Quem diria! O cara do Visicalc...

Poderia ser também: "Quem diria! O cara do Lotus Notes...". Este é o Ray Ozzie. Depois de atuar como concorrente da Microsoft desde sempre -- em idade tecnológica -- tendo participado da criação do Visicalc em 1979, do Lotus Notes em meados dos anos 80, Ozzie fundou a Groove Networks em 1997. A Groove, especializada em ferramentas para o trabalho colaborativo através da Internet, acabou sendo comprada pela Microsoft em 2005, quando Ozzie assumiu a posição de CTO (Chief Technical Officer) na empresa. No último dia 15 de junho, porém, Ozzie foi promovido para a função de Chief Software Architect, a mais alta função no direcionamento estratégico dos produtos da Microsoft, até então ocupada pelo fundador da empresa, Bill Gates. Até 2008 Gates e Ozzie dividem a função, com Ozzie assumindo cada vez mais responsabilidades, até que Gates possa se dedicar exclusivamente à sua fundação beneficente Bill & Melinda Gates Foundation.

Há algumas semanas ministrei uma palestra na cidade de Três de Maio, fronteira oeste do Rio Grande do Sul, na SETREM (Sociedade Educacional Três de Maio), uma instituição de ensino superior e técnico profissionalizante. Falei sobre a história do software livre, modelos de negócios e o exemplo da Solis, cooperativa de soluções livres, da qual sou um dos fundadores. A platéia, bastante jovem, foi muito participativa e me surpreendeu com perguntas de altíssimo nível sobre a evolução do mercado de informática de uma forma geral e sobre o que eu estava achando das investidas da Microsoft em projetos de código-aberto. Conversa vai, conversa vem, acabei contando a eles que, no concorrido mercado de informática, a gente chega numa certa idade em que se descobre "consultor" -- um nome bonito para quando a gente não consegue mais explicar para a nossa família exatamente o que faz. Um consultor é um grande vendedor de palpites. Mas para que estes palpites funcionem eles têm que ser certeiros e para se dar um palpite certeiro a melhor coisa é que ele não seja tão inédito assim, que já tenha sido usado efetivamente antes. Desta forma, um bom consultor tem que ler muito, conversar muito e procurar ter uma base histórica sólida que o permita construir bem sua análise de situações e daí formule seus palpites que indiquem para seus clientes os caminhos para a solução ideal para seus problemas, melhorando sua produtividade e competitividade. Minha palestra foi no dia 15 de junho. No dia seguinte, um dos alunos que assistiram à minha palestra já havia me mandado uma mensagem perguntando minha opinião sobre a "aposentadoria" do Bill Gates e de que forma isto poderia dar mais espaço para as soluções em software livre.

Já comentei sobre a estratégia de aproximação da Microsoft ao "Open Source" neste outro artigo, mas lembrando de um episódio que tem a ver com a carreira do Ray Ozzie, posso extrapolar um pouco mais. Na minha palestra, eu lembrava que, no princípio, o software era livre. Os computadores dos anos 60 e 70, já avançando para aplicações comerciais, eram extremamente caros e complexos e os programadores trocavam livremente seus programas e informações. Quando as margens de lucro começaram a diminuir é que os fornecedores de tecnologia começaram a usar mecanismos de patentes e direitos autorais para migrar seus ganhos do hardware para o software. O interessante é que, nos Estados Unidos, até 1981 era virtualmente impossível de se patentear um software. O Visicalc, programa pioneiro de planilha de cálculos, que já mencionei no começo deste artigo, não era patenteado. O Visicalc perdeu-se no tempo e espaço, superado pela hegemonia do Excel da Microsoft.

Depois de 1981 patentes de software começaram a proliferar nos Estados Unidos. Em agosto de 1981 foi lançada a primeira versão do Microsoft DOS. A Free Software Foundation foi criada em 1983 e desde o seu princípio posicionou-se contra as patentes de software. Em 2004 Bill Gates havia declarado que patentes são parte do ciclo de inovação tecnológica da Microsoft. Agora que a Microsoft divulga iniciativas como o Port25 e o Codeplex, além de investimentos em projetos bastante visíveis de código aberto como o JBoss e o Sugar-CRM, Bill Gates dá espaço para um novo ciclo de inovação na empresa ao sair gradualmente de lado, dando espaço para que Ray Ozzie traga novo sangue em uma função-chave, lembrando que estas funções são normalmente exercidas por gente de carreira na Microsoft (dez anos ou mais). Ozzie é um novato em termos de Microsoft.

É comum a todos nós personalizarmos empresas. Microsoft é Bill Gates, Sun é Scott McNeally e por aí vai. Mas a coisa não funciona assim. Uma empresa do porte de uma Microsoft não tem mais a dependência de seu fundador, cresceu além dele. Mesmo que o anúncio da saída de Bill Gates cause algum impacto nos acionistas, é a ação efetiva de seu substituto que irá mostrar como se comportarão as ações da empresa. Sem Bill Gates atuando diretamente nas decisões da empresa, perde-se em parte o antagonismo Davi e Golias que se criou entre a Microsoft e a comunidade de software livre, entre Bill e Linus (ou Stallman, ou Maddog). E sem este antagonismo, a Microsoft tem mais espaço para ir posicionando-se com mais tranqüilidade em um novo modelo de negócios baseado mais em oferta de serviços do que na venda de pacotes de software. A venda de software como serviços não é algo tão novo assim para a Microsoft. Em 2000 eles já falavam de uma estratégia "software-for-rent", onde disponibilizaria seu software através de servidores de aplicação. Mais recentemente a empresa anunciou que estaria "vendendo" computadores por um preço baixíssimo, "alugando" o uso de seu software neste computador ou vendendo minutos de uso, de forma bem similar à qual são vendidos telefones celulares hoje: compra-se um celular por um preço baixo e o que as empresas vendem são os serviços de comunicação, pré-pagos ou com uma assinatura mensal.

O maior concorrente da Microsoft, especialmente em termos de inovação, é o Google. Ray Ozzie tem o potencial, sem ter o ranço "proprietário", "monopolista" de Gates e Ballmer de conduzir a empresa para uma nova era, intensificando parcerias e fazendo com que a empresa se aproxime ainda mais do modelo de serviços que pauta empresas de software livre e código-aberto. Ozzie sabe que patentes não estão diretamente ligadas à inovação: o Visicalc não pôde ser patenteado. Talvez Ozzie, como Dan Brincklin, outro que participou da criação da planilha, tivesse patenteado o mesmo se pudesse. É muito cedo para uma análise mais agressiva. Minha bola de cristal (tenho duas, uma de reserva) ainda está enevoada, mas hoje eu apostaria ainda mais na seqüência da estratégia de abertura de código da Microsoft.

Artigo produzido para o Dicas-L



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